24 de julho de 2023

"O football mata a graça da mulher" e outros despautérios

História recente do futebol feminino: prisões, cabeças raspadas e ursos de tutu


Nas redes sociais, tem chovido manifestações contrárias ao futebol feminino. As mais moderadas apelam ao desdém (“Não vou assistir aos jogos da Copa feminina”), mas algumas preferem a crítica, o deboche e mesmo a agressão. Muitos justificam seu desgosto com comparações indevidas com o futebol de homens, afirmando que as mulheres perderiam mesmo para times de adolescentes e que são incapazes de se igualar em técnica aos homens. 

 Curiosamente, quando recebem a informação de que Marta é pessoa que mais marcou gols na história das Copas do Mundo (incluindo a masculina), e que foi eleita 6 vezes a melhor jogadora do mundo (Neymar chegou no máximo ao 3º lugar), dizem que não se pode comparar o futebol feminino e o masculino. Esses beócios decerto pensam que estão exercitando alguma forma de rebeldia ao, confortavelmente dos seus sofás de casa, recusarem-se a assistir a um jogo na TV. 

 A questão é que toda e qualquer crítica ao futebol feminino brasileiro hoje erra ao não levar em conta o histórico dessa modalidade no Brasil. Depois de um começo precário, o futebol praticado por mulheres foi proibido por lei por quase 40 anos. Veja bem, não é que esse esporte carecesse de regulamentação ou não tivesse uma entidade organizada. Era CONTRA A LEI mulheres jogarem futebol.






 O artigo 54 do Decreto-Lei 3.199/1941 delimitava que: 
 “Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza (...)”.

A proibição não veio do nada. O Decreto refletia o espírito social da época, que já desfavorecia o esporte para as mulheres. Na edição de 26 de junho de 1940, o jornal O Dia publicou a opinião do Dr. Leite de Castro, Chefe do Departamento Médico da Liga de Futebol do Rio de Janeiro, tido como percursor do controle médico dos esportes no Brasil e notável autoridade em assuntos científico-esportivos. Dizia ele sobre o futebol feminino:

“Nada lhes aproveita e, pelo contrário, proporciona-lhe alterações nas funções circulatórios e renais, além de perturbações estáticas que o exercício físico violento pode determinar na esfera genital [...] Só pode ser aplaudido, como exibição grotesca ou teatral ao sabor da curiosidade popular.” Ele continua dizendo considerar a prática do futebol por mulheres “um espetáculo ridículo e digno de merecer atenções das nossas autoridades”. 

 A partir daí, o futebol feminino ficou relegado à marginalidade. Ou então aparecia como atração em jogos comemorativos, festas e até mesmo em circos. Ou seja, mulheres jogando futebol dividiam o palco com atrações “exóticas” como ursos vestindo tutu de balé. 


 Depois que a Lei foi revogada, somente em 1979, ainda se passaram anos até que a prática fosse regulamentada. A primeira Copa do Mundo feminina foi apenas em 1991. A primeira copa Masculina foi em 1930 e os grandes times brasileiros surgiram no início do século 20, ou seja, nessa corrida comparativa com os homens, as mulheres largaram com quase um século de desvantagem. O primeiro torneio nacional de futebol feminino, ainda experimental, só ocorreu em 1997. Para se ter uma ideia, times masculinos do Botafogo, Corinthians, Atlético Mineiro e Internacional já tinham cerca de 100 anos de história. 

 Ainda neste século, em 2001, a Federação Paulista de Futebol resolveu investir em um campeonato de mulheres. Um dos critérios para a escolha das jogadoras? A beleza. Mulheres não podiam ter cabelo raspado. O então presidente da FPF declarou: “Temos que mostrar uma nova roupagem no futebol feminino, que está reprimido por causa do machismo. Temos que tentar unir a imagem do futebol à feminilidade”. 

 Sissi, a maior jogadora da seleção à época, não participou da competição. Ela adotara a cabeça raspada como forma de homenagear um garoto com câncer que conhecera nos EUA.



 A primeira árbitra brasileira também passou por poucas e boas para conseguir exercer sua atividade: chegou a ser presa pelo menos 15 vezes, mesmo não havendo proibição legal quanto a arbitragem.

 Há quem argumente que, para ganhar atenção midiática e investimento, é preciso antes ganhar títulos. Mas não é o que ocorre. O time feminino do Santos, por exemplo, venceu a Copa Libertadores de 2009 e 2010 e ficou em 3º na de 2011, além de ter vencido o campeonato paulista. O que a direção fez? Um calendário com fotos “sensuais” das jogadoras. Depois disso, dissolveu o time. 

 E não foi apenas no Brasil que o futebol foi proibido ou teve restrições para mulheres. Países como Reino Unido, Bélgica, França, Iugoslávia, Alemanha e Paraguai também não permitiram que mulheres jogassem em algum momento. 

 Mesmo com a “aceitação” social que o futebol feminino teve nas últimas décadas, ainda hoje a própria imprensa contribui para emprestar um ar de excentricidade à modalidade, sem falar na erotização, afastando-a da esportividade. Se nos anos 1940 as manchetes iam de “O football mata a graça da mulher” e “Pé de mulher não foi feito para se meter em shooteiras”, uma manchete recente, depois de uma goleada da seleção feminina, estampou: “Meninas dão de quatro”.

 Essa recente campanha contrária ao futebol de mulheres, apesar de lamentável, não surpreende, pois é compatível com o atual espírito reacionário que tomou conta de boa parte da sociedade brasileira. Longe de ser apenas uma onda “conservadora”, que louva “valores tradicionais”, é um movimento retrógrado e pernicioso, de raiz autoritária, que remonta às piores décadas do século 20. 

 Referências: 1. “Léa Campos, a mineira que enfrentou proibição na ditadura para se tornar 1ª árbitra de futebol do Brasil”  https://www.bbc.com/portuguese/geral-60092018 

 2. “Futebol feminino: os pretextos usados para proibir prática no Brasil e no exterior” https://www.bbc.com/portuguese/articles/cw4gjkxlrdko 

 3. “Maior nome antes de Marta, Sissi carrega história de preconceito e pouco reconhecimento” https://ge.globo.com/futebol/copa-do-mundo-feminina/noticia/maior-nome-antes-de-marta-sissi-carrega-historia-de-preconceito-e-pouco-reconhecimento.ghtml 


 5. “Brasil já teve gênio antes de Marta. E a rejeitou por um cabelo raspado”

 6. MULHERES E FUTEBOL NO BRASIL: DESCONTINUIDADES, RESISTÊNCIAS E RESILIÊNCIAS https://www.scielo.br/j/mov/a/BL3dbSMQpV3KyFcsqhWyQVc/?lang=pt 

 7. AS SEREIAS DA VILA NA TERRA DO REI: UMA ETNOGRAFIA DE SANTOS FC FEMININO 


 8. Football Feminino entre festas esportivas, circos e campos suburbanos: uma história social do futebol praticado por mulheres da introdução à proibição (1915-1941)
  https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/28563 

 Abaixo, comentários retirados de redes sociais na última semana, marcando o começo da Copa do Mundo 2023:

















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