Alguns maledicentes poderão dizer que esta crônica é sobre os meandros da vaidade humana. Nada disso, é apenas um relato voltado prioritariamente para o mundo corporativo, visando apresentar técnicas de vendas que otimizem os lucros num mercado competitivo. Ou não. Os dois casos aconteceram comigo em Porto Alegre na última semana.
- Numa calçada do bairro Moinhos de Vento, a moça, de prancheta na mão, tenta abordar várias pessoas, nenhuma para ou olha para ela. Eu paro e ouço. Ouço muito. É da Médicos Sem Fronteiras, quer que eu salve as crianças que vão morrer desnutridas se eu não fizer alguma coisa agora mesmo. Como não sou médico, só um cidadão comum sem superpoderes, o que eu posso fazer de mais concreto é debitar uma quantia mensal no meu cartão de crédito.
A moça diz: “Sabe, eu acredito numa coisa, o bem que gente faz volta pra gente depois. Então, se ajudar essas crianças, tenho certeza de que isso vai voltar pra ti de alguma forma”.
Respondo: “Isso tá me parecendo aquela coisa católica de fazer caridade pra garantir um lugar no céu”.
Ela: “Não, não! Não é isso! Também não acredito em garantir um lugar no céu!”.
A coisa toda parece legítima, a moça usa um colete da MSF, crachá de plástico novinho, tem um tablet com um programa todo bacanudo, folders bonitos e até ímã de geladeira da MSF. Me sinto culpado, afinal, minha mãe me chantageava com as “crianças passando fome na Etiópia” toda vez que eu deixava comida sobrar no prato; eu as ignorei por décadas, e agora estão aqui, clamando por meu cartão de crédito. Então aceito me endividar.
Ela começa a preencher o meu cadastro no tablet. Cep, telefone, endereço, etc. Aí vem: “Data de nascimento, começando pelo ano”. Digo “setenta e seis”. Ela gira os numerozinhos no tablet até “56”. E eu: “Não! 76! Tu acha que eu tenho 62 anos?!”
Ela: “Não, não, claro, desculpa!”.
Eu: “Eu acabei de voltar da psicóloga, tenho toda uma dificuldade de aceitação da idade e do envelhecimento, e agora tu acha que eu tenho 62?! Acabou com todo o trabalho dela”.
Ela: “Não, claro que não, me confundi. É 76, então?”.
Eu: “Acho que tu não entendeu. Tu acabou de destruir o meu dia”. - Outra rua, outro bairro, mulher de prancheta na mão:
“Ah, vou te abordar também. Estamos com uma campanha pro Orfanato São João, estou vendendo essas canetas e chaveiros, se puder ajudar”. Fico logo com uma pulga atrás da orelha. Na prancheta, um papel encardido cheio de nomes rabiscados, presumivelmente outros benfeitores.
Eu: “Qual o nome desse orfanato?”.
Ela: “Orfanato São João”.
Eu: “E onde fica esse orfanato?”
Ela: “Em Alvorada, são crianças em situação de rua.
Eu: “Em situação de rua? Mas não estão no orfanato?”
Ela: “Elas vão ficar na rua se o orfanato fechar por falta de dinheiro”.
Minha pulga atrás da orelha fica com um pé atrás. Percebendo minha desconfiança, ela faz um gesto largo e diz sorrindo: “Eu sou a Janete, tô sempre por aqui, todo mundo aqui me conhece”, o que meu cérebro automaticamente traduz como “Nunca passei por essa rua antes, portanto ninguém aqui me conhece”.
Mas penso no meu hipotético lugarzinho no céu, quem sabe com mais esse desapego monetário consigo um com sacada gourmet. Apesar de ateu, vai quê, né? Dou um capstar pra pulga e digo que vou levar uma caneta, que, mais cedo ou mais tarde, me será útil.
Ela estende a mão para o meu rosto e me fala, com os olhos brilhando:
“Ahhh, agora estão usando assim, gosto muito”.
Eu demoro alguns segundos até entender que ela se refere ao amontado de pelos desordenados que crescem no meu rosto feito erva daninha depois de 8 meses sem ver uma gilete. Digo:
“Ah, isso aqui é só relaxamento mesmo”.
Ela: “Que nada, fica muito bem em ti!”.
Eu: “Me dá três canetas”.
Ela: “Fica um gato, na verdade!”.
Eu: “Me vê cinco logo, assim não precisa me dar troco”.
Ela: “Ah, que bom que me ajudou, brigada mesmo, meu tesão”.
Se alguém estiver precisando de chaveiro, eu tenho uma dúzia sobrando aqui em casa.
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