1 de agosto de 2013

Peça - A Consulta

Mini peça que escrevi há anos durante uma aula de linguísitca, e que dei para a minha terapeuta.



 A Consulta



Personagens:
Dr. Mavedeus, o terapeuta
Dona Rislande, a secretária
Paciente, o paciente

Sala de espera do psicanalista.
Secretária e paciente sentados.
No consultório, um pano preto cobre a sala do doutor.
A secretária masca um chiclete e faz rabiscos em um papel sobre a mesa.
Paciente senta na última cadeira de uma fila de cinco cadeiras, olha ao redor, tem as mãos sobre os joelhos, as pernas juntas, consulta as revistas, vê uma caixa de areia num canto. Se abaixa e começa a mexer na areia. Colocando nela os bibelôs que estavam na mesinha. A secretária chama o Dr. Mavedeus:

Secretária - O seu paciente das cinco horas já esta aqui, Dr. Mavedeus.
Dr. Mavedeus – Já estou indo, dona Rislande.

-sai da sala uma loira de camisa vermelha, mini saia preta e salto alto, ele sai colocando a camisa pra dentro das calças-
-a secretária olha a mulher de cima a baixo-

-Dr. Mavedeus se dirige ao paciente:
Dr. – Como está? Vamos entrando.

-apertam-se as mãos-

Paciente – Pra ir adiantando o serviço eu já fiz uma representação das minhas ansiedades nessa caixa de trabalho. Quer levar pra dentro pra analisar?
Dr. – Que caixa de trabalho? ......Não, não precisa....

-vira-se para a secretária, sussurrando:
-Dona Rislande, não recolheste a caixa do gato?


Dentro da sala de consulta

Para o paciente:

Dr. -  Não, não, hoje vamos só conversar um pouquinho.

Paciente - ah, claro. Tudo bem. Ok. Vamos lá.
Dr.- Por aqui, por favor

-No consultório.  Um sofá, duas poltronas-

P. – onde eu me sento?
Dr. - Onde te sentires melhor.
Paciente senta na poltrona do Dr. Mavedeus
Dr. – Menos aí.

Dr. – Então, o que te trouxe aqui?
P – Ah, eu vim a pé mesmo. Eu moro aqui pertinho. Sabe o mini mercado Picinini? Pois é, você passa o mercado e é logo depois da esquina, do ladinho da casa de ferra...

------doutor o interrompe com um pigarro forte---

Dr. – Claro, claro. E por que motivo o Sr. veio me procurar?
P – Ah, desculpa, Doutor, eu tô um pouco nervoso. É que é um assunto meio complicado que vem me afligindo há um bom tempo. Eu nunca falei sobre isso com ninguém. Eu mesmo venho tentando evitar pensar nisso. Mas é como se fosse um fantasma, sempre me assombrando. E agora não dá mais pra ignorar.
Ele tá sempre ali, me esperando, em algum lugar da minha mente, causando esse profundo desconforto...é uma coisa que, sei lá, entende? Não sei nem como te dizer, eu tentei ensaiar antes de vir pra cá mas...

Dr. - Entendo. O Sr. Por acaso não estaria passando por uma crise de identidade sexual?

P. – Doutor , mas tu é bom mesmo doutor!!. É isso aí mesmo. Tu é bom, tu é bom, tu é bom mesmo.

Dr. – Sou sim. Me diga uma coisa, tens dormido bem?
P – Tenho sim.
Dr. – Tens sonhado?
P – Tenho, nem sempre me lembro, mas tenho sim.
Dr. – Se lembra de seu último sonho, como foi?
P – Lembro! Eu estou num palco, num teatro... estou de terno branco. A platéia está lotada. Seguro um crânio numa das mãos, vou falar meu texto e, quando vejo, o crânio que seguro é o meu próprio. Só que com mais olheiras. Esqueço o texto e da coxia alguém me sopra a minha fala, mas numa antiga língua dos povos nórdicos, ou isso ou o cara estava cantando uma ária de Verdi e tentando mastigar pregos ao mesmo tempo. Bom, a questão é que não entendo uma palavra do que diz, fico nervoso, olho de volta pra platéia e todos começam a rir. Um arremessa um tomate, outro um ovo, uma senhora joga uma frigideira. Pergunto se alguém tem orégano, mas não me escutam. Poderia ter feito uma bela omelete. Humilhado, me retiro de cena.

Dr. – Hummmm...Interessante....ahã....
P . – E então, o que achou?
Dr. Hhummm, interessante...ahã..O que VOCÊ achou?
P. – O que eu achei? Mas eu estou te pagando pra isso.
Dr. - Hummm...interessante..ahã...

Pausa. Paciente fica inquieto

Dr. – Sim, sim,....ahã...-. Interessante essa colocação...
P . – Mas eu não tô falando nada!
Dr. – Mas seu corpo está. Já ouviu falar em linguagem corporal?
P . – Coméquié?
Dr. – Estou apenas lendo o que seu corpo está me dizendo.
P . – É? E o que meu corpo está te dizendo?
 –longa pausa-
P.- E então?!
Dr. – Então o que?
P . – O que diz minha linguagem corporal afinal?
Dr. – Já te disse.
P.- Como já me disse? Estou quieto há horas.
Dr.-  Já te respondi com minha linguagem corporal também.
P. – Ah, esquece...o que tu podes me dizer sobre o sonho afinal? Tem algo a dizer?
Dr. - Tenho algumas observações importantes a fazer. Primeiro: a presença da mãe judia.
P. Mãe judia? Que mãe judia?
Dr.-  Não tente ignorá-la. Ela está lá.
P. – Onde?!
Dr. – Na plateia, na segunda fila, chorando durante toda a sua apresentação.
P. - ??!
Dr. – Ela está ali, do lado do pai castrador, à direita do homem vestido de esquilo.
P. – Mas..m..Mas eu nem sou judeu.
Dr.- Não é a questão. É uma mãe de inconsciente coletivo. O que eu vejo aqui é muita culpa. Afinal, do que você se arrepende? O que esconde? Você é sádico? Gosta de vê-la sofrer? Aonde pensa que vai chegar com tudo isso?
P.- Doutor, não quero fugir do assunto, mas não é melhor nos focarmos ao problema que vim aqui tratar? Aquele sobre o qual não consigo falar?
Dr.- Sim, sim, claro....Bem, me diga uma coisa: quando você está lá no palco, com seu terno branco - por sinal símbolo de castidade – você fala em um microfone?
P. – Não.
Dr. Não há nenhum microfone?
P.- Não. Nenhum.
Dr.- Hummm...ahã...interessante. Nenhum canhão de luz talvez?
P. – Não.
Dr.- Tens certeza?
P. - Absoluta.
Dr. – Não tem um lanterninha?
P.- Não.
Dr. – O maestro não segura uma baqueta?
P. – Não tem maestro nem orquestra.
Dr. - Uma luta de espadas na peça?
P. – Não. É um monólogo.
Dr.- Hummm....ahã..interessante....Não há, quem sabe, um vendedor de churros?
P.- Não, eles não podem entrar no teatro. Ficam na rua.
Dr...Sim, sim, ahã.....interessante.
P. – Afinal o que são essas perguntas Doutor?
Dr. – Nada não, eu só estava procurando um símbolo fálico. -Diz diminuindo a voz-
P.   – Fali o que?!

Dr. – Me fale da sua infância.
P. – O que quer saber?
Dr. - Alguma coisa que tenha te marcado.
P. – Bom, quando eu tinha cinco anos aconteceu algo que me marcou muito. Não conseguia dormir, tinha acabado de ver Acredite se Quiser, e entrei no quarto dos meus pais sem bater. Quando entrei flagrei meu pai, como vou dizer....
Dr. – Tendo relações sexuais?
P. – Não.
Dr. - Afogando o ganso?
P. Não.
Dr. - Molhando o biscoito?
P. – Não.
Dr. – Agasalhando o croquete?
P. Não
Dr. - Afundando a tanga?
P. – Não doutor, ele estava fazendo... palavras cruzadas. E minha mãe ajudando. Pensei na hora: então é isso que é o casamento? Eles bem que tentaram me consolar. Mas já era tarde... nunca pude me esquecer daquela cena...
Dr. – Hummm, sim, sim, interessante, ...ahã...Bem, vamos fazer o seguinte. Uma técnica de livre associação... Eu vou dizer uma palavra e você me diz a primeira coisa que lhe vier à mente.ok?
P. – Tipo Top of Mind?
Dr. – Mais ou menos isso...- Quando digo a palavra frio, o que vem a sua cabeça?
P. - Ar condicionado
Dr. - Livro?
P – Incêndio.
Dr. Água?
P. Não, obrigado.
Dr. – Planeta.
P. – Terra.
Dr. – Cidade.
P. – Tóquio.
Dr. – Igreja
P. – Marmota.
Dr.- Mãe.
P. – Marmota
Dr. – Pai
P. – Marmota lilás.
Dr.- Esporte
P. – Futebol.
Dr. – Time.
P. – Inter.
Dr. - Palpite pro próximo jogo?
P.- 1X0
Dr.- Quem marca o gol?
P. - O zagueiro do outro time, contra.
Dr.- Hummmm....obsessivo por futebol...interessante...
P. – Mas foi tu que perguntou!
Dr. – Hummm...a típica negação....ahã...
P. – Não estou negando nada!
Dr. – Uma negação dupla, ou seja, uma afirmação...
P – Doutor...
Dr. – Então admite o fanatismo por homens correndo atrás de uma bola?
P. – NÃO.
Dr -  Humm...agora está num estado típico de confusão mental...interessante.
P. – Não estou.
Dr. – Está
P. - Não estou.
Dr. – Está.
P.- Já disse que não estou.
Dr – Huumm, negando três vezes agora, noto uma grande influência de sua formação católica...

-Dr. Olha para o relógio de bolso-

Dr.-  Bem, Fulano, parece que nosso encontro chegou ao fim...
P. – Já? Mas não era uma hora?
Dr. - Uma hora de 15 min. Nos vemos nesse mesmo horário, semana que vem?
P. – Tá, mas, e quanto ao meu problema?
Dr. – Qual deles?
P. – O da minha, você sabe, identidade sexual...
Dr.-  Ah, esse... Muito simples fulano, não precisa se preocupar .

P. – Não preciso?
Dr. - Não , a verdade é que você é uma lésbica.
P. – Uma lésbica?
Dr. - Sim, uma lésbica aprisionada num corpo de homem.


P. – Hã? Mas como ass...
Dr. – Como disse, não é motivo para preocupação. É um caso muito comum hoje em dia. Aqui tem algum material sobre isso. Leve e leia em casa, ok? Falaremos mais sobre isso na próxima sessão. Passar bem.

Paciente sai devagar, folheando o material, ficam Dona Rislande e Dr. Mavedeus na sala de espera.

Sec.-  Cada um que aparece né doutor Mavedeus?
Dr. – É verdade, este último foi um diagnóstico muito complicado, difícil mesmo, é por isso que a gente tem que cobrar o que cobra. Por isso é que temos que valorizar nosso trabalho.
Sec.- Falando nisso, doutor, e quanto àquele aumento?...
Dr. – Tudo a seu tempo, dona Rislande, tudo a seu tempo..
Entra na sala e fecha a porta. Secretária fica lixando as unhas.
Sec. – Tsc, tsc, ...A típica negação...
 



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