25 de junho de 2013

Glória, adeus

I
Sempre achei igreja algo chatérrimo. Quando estava na primeira série, arrastei meus pais para uma missa católica. A voz monótona do padre, as constantes repetições e as inúmeras rezas (as quais eu desconhecia) me encheram de tédio. Também fui com minha avó a uma igreja adventista, e tive que sair na metade pra não dormir. Já na faculdade, fazendo uma cadeira de Antropologia Social, surgiu outra oportunidade de entrar em uma igreja. Não recordo bem os detalhes do trabalho, mas cada grupo se decidia por um local esquisito para ir e depois escrever uma análise antropológica. Um dos grupos, por exemplo, frequentou um cinema pornô por uma semana. Eu desci mais, me decidi por visitar a famigerada Igreja Universal do Reino de Deus. Para não despertar suspeitas, fui travestido de pessoa normal.

Entro, sento e logo sou recebido por um pastor, que facilmente identifica o novato. Me pergunta por que eu havia ido. Falo que não sabia bem, que queria conhecer melhor, e ele, como bom investigador da alma, intui que eu estava com problemas, o que me prontifiquei a confirmar (o que não era mentira). Pastor Roberto então me conta que ele próprio procurara a IURD anos antes "em busca de respostas". Fala que lá, diferentemente de outras igrejas, não há regras ou imposições. Um exemplo, ninguém manda as mulheres se vestirem com roupas fechadas e discretas, mas "com o tempo a pessoa vai descobrir que está errada" e não usará roupas curtas, o que despertaria a "cobiça dos homens".




- Quase fui drogado, revela Pastor Roberto.
- Quase fui homossexual, continua ele.

Ele continua falando, mas nem presto mais atenção, preso na armadilha semântica daquele "quase". Como assim "quase"? Ele ia se picar e na última hora mudou de ideia? Ele ia dar e no último minuto viu que não tinha camisinha e desistiu? Vou perguntar sobre aquele "quase", mas chega outro pastor, Charles, de sotaque baiano. Convida para o culto que haverá em seguida. Aceito, claro.

Satanás
Como o prédio está em reforma (e meses depois ficou claro que se tratava de uma gigantesca expansão), o culto se dá em uma pequena sala aos fundos, lotada, com capacidade para umas 80 pessoas. É verão, e em poucos minutos a sensação de abafamento e o cheiro de suor tornam o ar do ambiente pouco respirável. Um ventilador apontado para o pastor pouco alivia o calor. É Pastor Charles quem assume o microfone, sempre gritando, sempre repetindo "amém, pessoal?" ou "graças a deus, pessoal?" ao final de cada frase. Ao contrário do modorrento padre católico, ele não deixa o clima esmorecer, pelo contrário, parece gritar cada vez mais rápido e mais alto, gesticulando muito e exibindo inevitáveis marcas de suor nas axilas.

- Quem aqui tem problemas de saúde?", muitos levantam as mãos.
- Quem aqui tem problemas financeiros?", todos levantam as mãos.
O baiano explica que os cultos da IURD abordam um tema específico a cada dia da semana: segunda-feira, família; terça, saúde; quarta, vida afetiva, e assim por diante.

Pastor Charles continua na empolgação:
- Deus, ajude essas pessoas que vieram aqui em busca de uma resposta para suas vidas!.

Em seguida anuncia que vai passar uma sacola com os pedidos de oração. Recebo um pequeno envelope verde-claro. Pergunto para a pessoa ao lado como aquilo funciona. Me explica que eu tenho que escrever no envelope o nome da pessoa que precisa de uma oração, e dentro devo colocar dinheiro. Aproveito para conversar com ela, que aparenta uns 35 anos e se chama Loraci. Formada em enfermagem, me conta que, quando estava desempregada, procurou a "ajuda de deus" na IURD e fez a seguinte promessa: conseguindo um emprego, doaria o seu primeiro salário para a igreja. No mês seguinte, conseguiu um emprego. Diz que continua frequentando pois considera "a grande salvação" de sua vida. A grande maioria dos fiéis são mulheres, os poucos homens parecem ser apenas acompanhantes.


Charles segue a gritaria, sempre no mesmo ritmo, fazendo com que parte da plateia entre numa espécie de transe, alguns levantam as mãos, outros fecham os olhos falando sozinhos, alguns choram. Ao lado do pastor, um forte estouro vem do ventilador, saem faíscas e uma fumaça preta do motor, e as pás param de girar.
- É trabalho do demônio!, diz Charles aproveitando a deixa, e não consigo deixar de pensar que o inesperado efeito pirotécnico pode ter sido premeditado.

Atrás de Loraci há uma mulher que puxa papo com todos, comentando sobre o calor. Dou abertura e descubro que Cláudia, uns 40 anos, começou a frequentar os cultos quando foi levar a sua irmã, que tem "problema com droga". Ela gostou da coisa e acabou pedindo para curar-se de um sério problema de reumatismo. Curou-se, segundo ela,  e passou a ser frequentadora assídua. Perguntei sobre a irmã, mas desconversou, apontando para a frente, de onde Charles recomeçou a gritar.

- Se não tiver 50 reais pode ser menos, mas compensa no mês que vem. É você que sabe se quer ser salva!

O saco onde as pessoas colocam os envelopes verdes com dinheiro, largo e da altura da minha cintura, já está abarrotado. Tento calcular quanto dinheiro poderia haver ali. Uma mulher levanta a mão e pede autorização para o pastor para faltar ao próximo culto. Ele autoriza, mas questiona o seu comprometimento.

Por fim, o culto termina. Reencontro Pastor Roberto na saída, que me diz: "Até semana que vem."


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II
A rua onde eu morava era bem servida espiritualmente. Num trecho de dois quarteirões, havia uma Igreja Universal, uma Assembleia de Deus, uma Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, um centro espírita e uma casa de umbanda, além de um bar. Algumas quadras mais adiante, havia também uma igreja católica. Pra completar, minha própria casa, dizia-se, fora construída em cima de um antigo cemitério indígena. Se aquela rua fosse uma réplica do mundo, haveria guerras constantes. Em horários de cultos, sessões, missas ou seja lá como se refiram aos seus encontros, era possível identificar os fiéis pelo seu estilo de vestir. As hordas de evangélicas, grupos de mulheres sem maquiagem, de cabelo comprido e saias longas, com um senso estético nulo, eram as mais facilmente identificáveis.

Uma noite passei por um desses grupos antes de chegar em casa, entrei, tomei uma coca, fui tomar banho e só depois dei por falta do meu celular. Como de praxe, liguei para ele para poder localizá-lo, mas chamou por um bom tempo e não ouvi seu toque. Me dei conta de que poderia ter deixado cair na rua, ao pegar as chaves de casa no bolso, ou algo assim. Peguei um celular emprestado e fiquei ligando várias vezes, tentando localizar o seu som. Aí atenderam. Eu disse "alô" e não tive resposta. Liguei de novo e novamente atenderam, sem nada dizer. Dessa vez consegui ouvir um som de um lugar cheio de gente, e em seguida uma voz ritmada, se destacando das demais, que silenciavam e se manifestavam de tempo em tempo. Deduzi que meu celular tinha sido furtado pelo membro de alguma entidade religiosa da área, e fui passando de uma em uma para ver qual estava em atividade naquela hora. Percebi movimentação na Igreja Universal e fui ali pra frente, ainda com o celular no ouvido atento àquela voz. Pelas janelas, acompanhei o pastor falando, sem ouvi-lo de fora, apenas pelo celular.

Quando entrei na Igreja percebi que havia um delay de meio segundo. Em meio ao culto chamei um dos obreiros (como se chamam os ajudantes na IURD), explicando que meu celular tinha desaparecido e que estava com alguém ali dentro. Ele foi até o pastor e cochichou no seu ouvido. Ele voltou ao microfone:

- Irmãos, nós temos uma pessoa aqui que perdeu seu celular. Se alguém aqui encontrou esse celular por favor entregue aqui pra gente.
E todo mundo quieto. Ele insistiu, pediu mais uma, duas vezes. Até que uma velhinha lá na primeira fila se levantou devagar, toda encurvada, com um dos braços levantados. Na mão direita, o meu celular. Ela o entregou para um dos ajudantes, que veio na minha direção sorrindo. O pastor aproveitou:

- Irmãos! Mais uma glória alcançada! Amigo, venha até aqui para agradecer por essa bênção!
Todos se viraram para trás, aos aplausos, aguardando a devolução do meu aparelho.
- Que bênção! Aleluia, irmãos! Glória a deus!

Apressado, peguei meu telefone e me retirei, prometendo a mim mesmo ter mais cuidado com o celular dali pra frente.


Neste blog também escrevi sobre minha visita à Igreja de Cientologia no Canadá.





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