1 de março de 2011

A loucura porta carteira de motorista

Raras vezes abri espaço para abordagens mais sérias neste blog. Também quase nunca cedo lugar para textos alheios, a não ser que seja para criticá-los. Pela primeira vez abrirei uma exceção. Numa flagrante mostra de nepotismo, a exceção que vou abrir é para o meu pai.

Meu pai, de 64 anos, há muito já deixou de pedalar, o que chegou a fazer com certa frequência lá no longínquo século 20, quando ia de terno, gravata e bicicleta para o trabalho. Depois que se aposentou, adotou o carro como veículo preferencial, para não dizer único. Portanto, um motorista. Eu, participante assíduo da Massa Crítica de Porto Alegre desde sua primeira edição (que contou com 6 pessoas), cansei de fazer convites para que ele tirasse a poeira da bike e participasse um dia do passeio, mas ele nunca se animou, e até desconfiei que desdenhasse um pouco dessa coisa toda dos ciclistas que reivindicam seus direitos. Para minha surpresa, logo depois da repercussão televisiva do atropelamento de ciclistas, ele me enviou o seguinte texto:


A loucura porta carteira de motorista

Algumas, muitas, a maioria das pessoas não compreende a dimensão dos próprios direitos. A reação pró-assassinato dos ciclistas que protestavam é simplesmente surpreendente. Espero que não se tente assassinar professores, metalúrgicos ou outras categorias quando, em protestos legítimos, obstruírem as ruas e avenidas de uma cidade. Ou comboios do exército, quando estes garantirem o próprio privilégio legal de passagem por essas mesmas ruas e avenidas. Ou as autoridades públicas quando trancarem as ruas com batedores em alta velocidade. A loucura anda solta e porta carteira de motorista. É assustador. Mais, ainda, quando cidadãos apoiam a quase chacina ocorrida em Porto Alegre, com razões infantis, como a necessidade de pedir licença à autoridade para circular de bicicleta pelas vias públicas da cidade, seja em grupo de três ou cem. De lembrar que automóveis também andam em grupos e se auto-obstruem em colossais engarrafamentos e não pedem licença a essa mesma autoridade. Lamentável é uma palavra fraca demais. O episódio é tristemente lamentável, porque se trata de um indicativo do quão frágil é nossa cidadania e quão infantilizados estão nossos corações e mentes. Estamos perdidos na obscuridade sem remédio. 

Temos observado pessoas ligadas à segurança do trânsito emitirem opiniões reveladores de uma visão totalmente anti-cidadã. Uma dessas convicções entende que bicicletas não devem andar no trânsito, mas, sim, em parques, em pistas especiais, por lazer. Temo que tais idéias venham da própria formação desses profissionais, e mesmo de universidades. A conscientização, esta fica em segundo plano. Pouquíssimo se faz nessa direção. É hora de uma revisão conceitual. E, principalmente, garantir o direito dos ciclistas. Parece mais fácil fazermos acusações às próprias vítimas do trânsito que, no presente caso, estão buscando, seguindo tendência mundial, o direito de circular sem poluir. Direito esse que se afigura como um dever de consciência para aquele grupo de pessoas. 

Espero estar entre elas na próxima bicicletada. 

Edgar O. Lopes

2 comentários:

  1. Diego, eu nunca vou esquecer dos tempos em que o teu pai ia para o trabalho de bicicleta de terno, gravata e sapato e voltava reclamando do desrespeito que sofria no transito até que desistiu! E cada vez que discuto sobre esse assunto com alguém (e nessa semana foram vários) que diz que as pessoas nunca irão fazer isso, eu uso ele como exemplo de que as pessoas podem sim fazer isso e podem sim desistir se nao apoiarmos ao menos respeitando.

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  2. Pois é, sabe que eu nem lembro dessas reclamações? Mas como eu disse, foi no século passado.
    Ler os comentários das pessoas condenando os ciclistas (inclusive vários jornalistas, como Políbio Braga e André Mags) me deixou doente. Mas a passeata de 2 mil pessoas dá uma pontinha de esperança de que algo mude lá adiante.
    abçs

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